4. O fogo do pregador:

(Com base em: Carlo Maria MARTINI. El presbítero como comunicador.Madrid: PPC Editorial y distribuidora, 1996, 199 p.)

- O tema do equilíbrio poderia dar uma imagem unilateral do que foi Paulo como pregador, se não falássemos em seguida do fogo, que, como veremos, não é tanto o fogo da caridade (que se dá por suposto), mas o fogo da polêmica, o impropério, a ameaça, o contraste com os adversários.

- Deve-se dizer, logo de início, que, assim como o equilíbrio misericordioso pode cair no perigo de brandura, de facilidade para fazer vista grossa, condescendência camuflada de misericórdia, da mesma forma o fogo pode tornar-se desculpa para impulsividade, ressentimento, ira, que encontram seu desafogo na polêmica, que expressada em público pode levar a inimizades e rupturas. Pior ainda équando isso acontece com o uso indevido da Palavra de Deus.

- Tal linguagem é hoje mais difícil de ser aceita porque as pessoas são mais suscetíveis, estão mais acostumadas à linguagem radiofônica e televisiva, que é mais sóbria: chegará a ser talvez sarcástica e felina, mas será sempre dita em tom asséptico. Mas, tal linguagem tem sem dúvida sua função e seu lugar em nossos dias. Muitas vezes escutamos palavras que nos fazem exclamar: “Estas sim são expressões sóbrias, mas hirientes, de fogo evangélico”. Palavras cheias do fogo da polêmica, mas expressadas com elegância, de maneira profunda e convincente. (Dom Luciano e a questão da Vale).

- No capítulo 23 do Evangelho segundo São Mateus, encontramos umas palavras duras de Jesus, que o apresentam quase violento, com certeza polêmico e áspero. Não podemos esquecer que se trata de textos reunidos pelo redator final num bloco unigênito, para uma comunidade que teve de enfrentar-se com o problema de um tipo de cristianismo falso e desleal. De toda forma são ditos que remontam a Jesus. Fico claro, portanto, que não podemos escapar à confrontação com o fogo da polêmica, do impropério, do reproche.

- Na Carta aos Romanos, Paulo, depois de exortar a que se viva em paz com todos, lembra a obrigação da prática da caridade para com os inimigos: “A ninguém pagueis o mal com o mal; seja vossa preocupação fazer o que é bom para todos os homens, procurando, se possível, viver em paz com todos, por quanto de vós depende. ... Se o teu inimigo tiver fome, dá-lhe de comer, se tiver sede, dá-lhe de beber. Agindo desta forma estarás acumulando brasas sobre a cabeça dele” (Rom 12,17-18.20). Dá a entender, assim, que a presença de quem pensa distinto, e inclusive de quem se opõe abertamente, é inevitável na vida cristã.

- Nas Cartas aos Coríntios, que é a mais rica em polêmicas, Paulo fala de vários adversários. Os exegetas os identificam da seguinte forma: alguns falam de líderes judaizantes, que pretendem voltar ás práticas judaicas; outros falam dos superpneumáticos, ou seja, os superespirituais que se opõem à vida cotidiana e simples da comunidade; outros ainda falam dos gnósticos, que elaboraram uma espécie de autosalvação que exclui a cruz de Cristo; há ainda a teoria de um exegeta americano que fala de uma mentalidade rural (pequenas cidades da Síria) que quer assimilar a mentalidade urbana (das cidades gregas).

* Paulo se refere a eles de forma dura, e com indiferença, pois nem cita seus nomes: “Esses tais são falsos apóstolos, operários enganadores, camuflados em apóstolos de Cristo” (2Cor 11,13). A seguir, dá a entender que se trata de gente religiosa: “E não é de estranhar! Pois o próprio Satanás se transfigura em anjo de luz. Por conseguinte, não é surpreendente que os seus ministros se transfigurem em servidores da justiça. Mas o fim destes corresponderá às suas obras” (2Cor 11,14-15). Não se trata de libertinos ou ateus, mas sim de pessoas devotas, talvez de espiritualidade e mística fanática, pois Paulo diz: “Não sou inferior a eles nestas coisas”.

- De fato, é surpreendente como a polêmica, em Paulo e em Jesus, se refira em geral a pessoas da esfera religiosa; suas palavras mais duras se referem às formas de pseudoreligiosidade ou de falsa religiosidade (Paulo é muito mais duro quando fala das pessoas religiosas do que quando combate a corrupção dos pagãos). Parece ser que o cristão sabe defender-se dos que não crêem em Deus ou que se propõem a libertinagem e a imoralidade como modelo de vida, mas lhes é mais difícil defender-se das formas que disfarçam a religiosidade, e que são substitutivos ou desvios do Evangelho e da cruz de Cristo.

- Por isso, o fundamental na homilia não é que haja um marco religioso capaz de atrair a atenção das pessoas – que seja uma homilia de oração, que tenha aparências espirituais ou mesmo místicas, que tenha palavras interiores – mas que se mantenha a pureza do Evangelho.

* Paulo polemiza com aqueles que, confiando mais no êxito pessoal, fazem contrabando com o Evangelho de Jesus, não pregando a cruz como ponto determinante do kerigma.

- Por isso temos tanta necessidade de mestres autênticos na Igreja, que nos ajude no discernimento espiritual para distinguir o bem verdadeiro do bem aparente, que nos indique não só as coisas em que crer, mas também nos indique como vivê-las e experimentá-las em nossa experiência diária.

* O papa é em primeiro lugar, para nós, esse guia. É impressionante como os documentos pontifícios aumentaram com os últimos papas; eles sentiram a urgência de um magistério mais forte (importância de ler os documentos pontifícios, o l’Osservatore Romano).

* Em segundo lugar, é importante o magistério dos bispos com os sacerdotes. Eles são os primeiros responsáveis pela liderança espiritual na Diocese. Numa sociedade que perdeu fortemente o sentido de Deus, ou que perdeu as realidades transcendentes por havê-las gastado tanto, é fundamental uma nova liderança espiritual. Quando falamos, por exemplo, de uma nova catequese de adultos não estamos falando da proposição de temas religiosos, mas de fazê-los de forma que apareçam como um guia de vida (MEU: as células do Henrique e Paula).

* Um meio fundamental para adquirir o sentido das coisas de Jesus, para ter o sentido dos valores e dos contraalores cristãos na vida, para ter a capacidade de assumir uma tal liderança espiritual, é acontemplação incessante da vida de Jesus, a assimilação dos conteúdos evangélicos pela Lectio Divina.