Colocados em favor dos homens

O sacerdote é, antes de tudo, um escolhido de Deus. Porém, a escolha divina não obedece a um capricho cego, nem esgota seu sentido no próprio escolhido.

Quando Deus chama um homem, o faz para uma missão específica: para pedir uma colaboração determinada em Seus desígnios de salvação. O sacerdote "está colocado em favor dos homens no que se refere a Deus para oferecer dons e sacrifícios pelos pecados" (Hb 5, 4). Deus o colocou ao serviço dos homens. Um serviço que tem sua própria especificidade nas coisas que se referem a Deus, e que se realiza especialmente no serviço sacramental. Porém, é evidente que não basta observar isto para configurar devidamente a identidade e a missão de quem é chamado a exercer o ministério sacerdotal. Poder-se-iam fazer diversas e até contraditórias interpretações do que significa esse serviço aos homens, isto é, o alcance de "o que se refere a Deus". Existem, de fato, diversos estilos de sacerdotes. Porém, é lícito que nos perguntemos se podemos oferecer patamar válido para todos os tempos e latitudes.

CRISTO SACERDOTE – SACERDOTES DE CRISTO

O mesmo texto da carta aos hebreus pode nos dar uma resposta. Porque, na realidade, o autor traçou uma descrição do sumo sacerdote, unicamente para nos apresentar a figura de "Cristo, o verdadeiro Sumo Sacerdote". Esse é o sentido de toda a carta:: "... foi atendido por Sua atitude reverente, e, ainda que Filho, pelo que padeceu, experimentou a obediência; e, chegado à perfeição, tornou-Se causa de salvação eterna para todos os que Lhe obedecem, proclamado por Deus Sumo Sacerdote" (Hb 5, 7b-10). Ainda que Sua vida, desde Belém até a cruz, fosse uma ação sacerdotal contínua, Sua morte na cruz condensa, de modo particular, o sentido de Seu sacerdócio. Sobre o altar da cruz, Ele ofereceu o sacrifício de Si mesmo. A epístola aos hebreus, ao contemplar o quadro da paixão em chave sacerdotal, realça a participação que a humanidade de Jesus teve. Naquela tarde, tudo teve tom de súplica, de intercessão pelos homens.

A morte do Filho de Deus obteve a salvação dos irmãos. Por isso, a regeneração completa do gênero humano é obra da ação sacerdotal de Cristo, o Filho de Deus feito homem. "Por isso, é mediador de uma nova Aliança para que, intervindo Sua morte para a remissão das transgressões da primeira Aliança, os que foram chamados recebessem a eterna herança prometida" (Hb 9, 15). Todavia, hoje, "único Mediador entre Deus e os homens" (1 Tm 2, 5; cfr Hb 8,6), Jesus Cristo intercede diante do Pai por Seus irmãos, os homens, e, como Deus que é, atrai do céu a salvação e a graça. Jesus Cristo é, pois, "o sacerdote da Nova Aliança". Os demais, todos os sacerdotes do novo povo de Deus, não são senão prolongamentos de Seu único sacerdócio, do qual participam sacramentalmente, porque Ele assim o dispôs. No Cenáculo, deu-lhes o poder de oferecer o sacrifício de Seu próprio corpo e sangue, exatamente como Ele acabava de fazer; e, para realçar esta identificação, pediu-lhes: "Fazei isto em memória de Mim" (Lc 22, 19).

Mais tarde, deu-lhes o poder de perdoar os pecados, uma faculdade que somente Deus podia Se atribuir e que Ele havia demonstrado possuir ao curar um paralitico (Lc 5, 21-24). Quando encarrega Pedro do ministério pastoral, deixa-lhe bem claro que se trata de assumir e continuar o pastoreio do Mestre:: "Apascenta Meus cordeiros" (Jo 21, 17). Cristo é, portanto, o Sacerdote. Por isso mesmo, somente Cristo pode dizer uma palavra definitiva sobre a identidade e o ministério sacerdotal. Não há outro modelo de sacerdote fora Ele. Nesse sentido, sim, temos uma fisionomia essencial do sacerdote, que não muda. O sacerdote de amanhã, não menos que o de hoje, deverá se assemelhar a Cristo. Quando vivia sobre a terra, Jesus ofereceu em Si mesmo, o rosto definitivo do presbítero, realizando um sacerdócio ministerial do qual os apóstolos foram os primeiros a serem investidos. Sacerdócio que está destinado a durar, a se reproduzir incessantemente em todos os períodos da história. O presbítero do terceiro milênio é o continuador dos presbíteros que, nos milênios precedentes, animaram a vida da Igreja. Também neste milênio a vocação sacerdotal continuará sendo chamada a viver o único e permanente sacerdócio de Cristo.

A missão de Jesus de Nazaré se nos apresenta como um prisma variado e precioso: curou os enfermos, pregou nas sinagogas e praças, perdoou os pecados de adúlteras e publicanos, transformou corações egoístas, recriminou os desvios e os abusos dos falsos guias do povo, reuniu e forjou um grupo íntimo de colaboradores... e, finalmente, ofereceu Sua própria vida como vítima de redenção. Porém, na realidade, tudo nascia de uma grande e profunda intenção: ser "glorificador do Pai e salvador dos homens". Toda Sua vida, de Nazaré ao Calvário, tem sentido unicamente à luz desse desígnio, em torno a esses dois pólos. Devolveu a vida a Lázaro por verdadeiro amor ao amigo, porém era consciente de que esta enfermidade era "para a glória de Deus" (Jo 11, 4). Ao se aproximar a hora da Sua entrega suprema pela salvação dos homens (Mt 26, 28), explica aos Seus que vai ser "glorificado" o Filho do homem, e que "Deus vai ser glorificado nEle" (Jo 13, 31).

Depois, dirigindo-Se ao Seu Pai, expressa vivamente o sentido de toda a Sua vida: "Eu Te glorifiquei na terra, levando a cabo a obra que me encarregaste de realizar" (Jo 17, 4). Na realidade, já os anjos do céu haviam anunciado no mesmo momento de Seu nascimento em Belém: "Glória a Deus nas alturas e, na terra, paz aos homens por Ele amados" (Lc 2, 14). Como Cristo, o sacerdote terá que viajar, pregar, atender enfermos, ajudar os necessitados, celebrar o culto divino, organizar e administrar...

Porém, sabe que, como Cristo, deve fazer tudo, desde o ato mais sublime da celebração da Eucaristia até a mais pequenina coisa do resto do dia, vivendo sua vocação sacerdotal como salvador das almas e glorificador de Deus, por Jesus Cristo, em Jesus Cristo e com Jesus Cristo.

SACERDÓCIO MINISTERIAL – CARÁTER SACRAMENTAL

É certo que todos os batizados participam do sacerdócio de Cristo: "Vós sois linhagem eleita, sacerdócio real, nação santa, povo adquirido" (1 Pd 2, 9). Isso nos recorda claramente o Vaticano II. Porém, o mesmo Concílio anota que o sacerdócio comum e o ministerial, ainda que estejam ordenados um ao outro, são diferentes essencialmente e não apenas por grau. Isso porque o próprio Senhor, com a finalidade de que os fiéis formem um só corpo, no qual não todos os membros desempenham a mesma função (Rm 12, 4), dentre os mesmos fiéis constituiu alguns como ministros que, na sociedade dos crentes, possuíssem o sagrado poder da Ordem.

Essa diferença "essencial" é determinada pelo caráter sacerdotal. Todo caráter sacramental faz com que o projeto que Deus elabora para uma existência humana não fique simplesmente em sua vontade, senão que, inapagável, se imprima no ser íntimo da pessoa. Assim, este projeto se realiza não como algo imposto externamente, mas como uma exigência vital que brota do próprio interior, do mais íntimo do próprio ser, e, portanto, não fica à mercê da vontade ou dos sentimentos; estes e aquela deverão, antes, por-se ao serviço do projeto vocacional, verdadeiro unificador da própria vida. Graças ao caráter sacerdotal, a identidade do presbítero não é um traçado que o configura a partir de fora, senão uma força viva que se injeta na intimidade da pessoa, fazendo-se inseparável de seu próprio ser.

O sinal que o caráter deixa na alma do sacerdote o converte em propriedade especial de Deus. É de Deus e para Deus a título exclusivo. Fica compenetrado de Deus. Isso não apenas pelo movimento que lança o homem em Deus, mas também enquanto que, nele, Deus sai ao encontro da humanidade para salvá-la. O caráter sacerdotal é sinal, além disso, de configuração com Jesus Cristo. Por isso, quando se diz que o sacerdote é alter Christus não se afirma que O representa por uma delegação externa, mas que a figura de Cristo sacerdote foi impressa em sua alma. Paulo VI não duvidou em exclamar: “Em virtude do Sacramento da Ordem, fostes feitos partícipes do sacerdócio de Cristo a tal extremo que vós não somente representais Cristo, não somente exerceis Seu ministério, senão que viveis em Cristo, Cristo vive em vós”. Esta configuração abarca a pessoa do sacerdote tanto em seu ser como em seu agir. O caráter marca o ministro para que possa fazer as vezes de Cristo e agir in persona Christi, como Cabeça.

Podemos dizer que, por meio do sacerdote, Jesus renova Seu sacrifício, perdoa os pecados e administra Sua graça nos demais sacramentos; por meio do sacerdote, continua nos anunciando Sua Boa Nova; por meio do sacerdote, continua guiando e cuidando do Seu próprio rebanho. Esta verdade teve sempre uma importância decisiva na Igreja. “Se não tens fé nisto (no sacerdote), toda sua esperança é vã. Se Deus não age através dele, tu não fostes batizado, nem participas dos mistérios, nem foste abençoado, isto é, não és cristão”. Encontramos aqui também a verdadeira raíz da missão do sacerdote. Foi escolhido para estar em favor dos homens no que se refere a Deus... como o esteve Cristo; mais ainda, como prolongação viva do serviço de Cristo. O caráter selou seu ser configurando-o a Jesus Cristo, para que prolongue em seu agir a missão mesma do Mestre.

PROFETA, SACERDOTE E REI

A missão de Cristo é unitária; porém se desdobra em três diversas e complementares funções: a função de ensinar, a de oferecer o culto e a de guiar o povo. Também o sacerdote realiza, portanto, sua missão como profeta, sacerdote e rei. Jesus Cristo, enquanto profeta, dedicou Seu ministério ao anúncio da Boa Nova (Mc 1, 39), e enviou Seus discípulos a fazer o mesmo (Lc 9, 6); esse foi Sua última recomendação: “Ide por todo mundo e proclamai a Boa Nova a toda criação” (Mc 16, 15). Desde então os discípulos compreenderam que eram "enviados", "apóstolos" da Palavra que se havia feito carne. Entenderam que a consagração sacerdotal recebida no cenáculo estava inseparavelmente unida a seu dever evangelizador.

Também hoje, o sacerdote de Cristo se sente exigido por esse dever, e escuta em seu interior a exclamação de Paulo: "Ai de mim se não pregar o Evangelho" (1 Cor 9, 16). Também ele se sabe enviado, apóstolo. Apóstolo do Reino de Jesus Cristo no mundo. A pregação e expansão do Reino de Cristo constituem o ideal que inspira, estimula, dirige e conforma todos os seus atos. Seu único desejo: que Jesus Cristo reine no coração dos homens, em todos os lugares, na vida da sociedade. Seu amor ao Reino se concretiza em seu amor sincero à Igreja fundada pelo Mestre, presença e promessa por sua vez do Reino de Cristo.

A partir do momento em que o sacerdote tem certeza que Deus lhe ordena essa missão, sabe que sua vida fica definitivamente comprometida com ela. Sente-se inteiramente entusiasmado pela missão; ela é a causa de seus temores e das suas esperanças, de suas penas e alegrias. É um "prisioneiro da causa de Cristo" (Ef 3, 1). O ímpeto do amor de Cristo para com os homens é uma força incontida no coração sacerdotal. É uma paixão que unifica toda a sua vida. Por isso tudo, mesmo uma situação circunstancial ou qualquer relação humana lhe servem de ocasião para anunciar Cristo. Não tem tempo para si nem para perder. A missão exige isso dele. É consciente de que as almas foram compradas ao preço do sangue de Cristo. Isto, para o sacerdote que, de verdade, ama a Cristo e está identificado plenamente com Ele e com a missão profética que Ele lhe conferiu, não é retórica, mas uma vivência profundamente existencial.

A função sacerdotal de Jesus Cristo, chegada ao cume ao Se oferecer a Si mesmo com vítima pascal (1 Cor 5, 7), é prolongada também pelo ministério sacerdotal. Os primeiros sacerdotes da Nova Aliança, aos quais o Mestre confiou Seus sacramentos (Lc 22, 19; Jo 20, 23), compreenderam que sua missão profética não podia ser separada de sua função sacerdotal. Por isso, os membros da primeira comunidade "acorriam assiduamente ao ensinamento dos apóstolos, à comunhão, à fração do pão e às orações" (At 2, 42). O que o sacerdote anuncia, celebra-o e realiza na liturgia, especialmente quando celebra o sacrifício eucarístico na pessoa de Cristo e o oferece em nome de todo o povo de Deus. A salvação em Cristo pregada sem descanso é atualizada no perdão dos pecados e nos demais sacramentos.

O sacerdote sabe que não é um simples "funcionário" do sagrado, mas "ministro e dispensador dos mistérios de Deus" (1 Cor 4, 1). Quando celebra os sacramentos, o faz não como quem recebeu um encargo que lhe é, no fundo, alheio, senão como quem realiza uma ação para a qual foi configurado o seu próprio ser. Ao oferecer o sacrifício do altar, sabe que deve se oferecer a si mesmo junto com ele; e esse oferecimento determina o tom de sua oblação total ao longo dos afazeres de cada dia. Finalmente, o sacerdote é também pastor. Sua participação na função real de Cristo o leva a se identificar plenamente com o Bom Pastor (Jo 10, 11-16). Pela unção e pelo mandato apostólico fica instituído como guia de uma porção do rebanho de Cristo; rebanho que ele convoca, preside, dirige, une e organiza no nome de Jesus. Isso implica que foi chamado a exercer uma autoridade. Porém, sua autoridade não é outra senão aquela do Filho do homem "que não veio para ser servido, mas para servir" (Mt 20, 28). O ofício de pastor pede coração de pastor. A virtude mais importante do bom pastor é a mesma do Bom Pastor: a caridade.

Com a ordenação, confere-se ao jovem uma graça especial de caridade, porque a vida do sacerdote tem sentido somente como vivência dessa virtude. Os cristãos esperam do sacerdote que seja homem de Deus e homem de caridade. Uma vez que Deus é amor, o sacerdote nunca poderá separar o serviço de Deus do serviço do amor aos irmãos; o sacerdote, ao se comprometer no serviço do Reino de Deus empenha-se no caminho da caridade. A caridade, atributo essencial do próprio Deus (1 Jo 4, 8), vem a ser como que a alma do sacerdócio que o representa entre os homens. Porém, o amor floresce somente no terreno da humildade. Sem ela, a autoridade deixará de ser serviço, ministério. O coração soberbo, onde queira que esteja, é ruim, recalcitrante, amargo, cruel.

Um sacerdote soberbo é uma antítese do Cristo evangélico: não aproxima, ainda que sem percebê-lo, mas afasta as almas de Deus. Profeta, sacerdote, pastor. Três funções distintas, porém que estão intimamente relacionadas entre si, se desdobram reciprocamente, se condicionam também reciprocamente e reciprocamente se iluminam.

TESTEMUNHO SACERDOTAL

Fica claro como a missão sacerdotal nasce da configuração do ministro com Cristo em virtude do caráter sacerdotal que conforma tanto o seu ser como o seu agir. Porém, não basta. À identificação sacramental com Cristo deve corresponder a identificação vital, experiencial, espiritual do sacerdote com seu Mestre. E, por outra parte, nunca realizará genuinamente sua missão o sacerdote que não tenha conseguido se parecer vitalmente com o Bom Pastor. Por isso, o Vaticano II exorta veementemente a todos os sacerdotes a que... se esforcem por alcançar uma santidade cada vez maior, já que a santidade própria dos presbíteros contribui em grande parte para o exercício frutuoso do próprio ministério.

A autenticidade de sua vida sacerdotal e a eficácia de seu ministério dependem de sua união profunda com a Vida, sem a qual “não podem fazer nada” (Jo 15, 5). Essa transformação existencial que faz deles “outros Cristos” não somente pelo sacramento, mas também por sua vida, é condição indispensável para que sua presença no mundo chegue a ser salvífica, como a do Senhor. A personalidade sacerdotal deve ser para os demais um sinal claro e límpido. Esta é a primeira condição do serviço pastoral dos sacerdotes. Os homens, dentre os quais foram escolhidos e para os quais foram constituídos sacerdotes, querem, sobretudo, ver neles esse sinal. E têm direito a isso. Apesar das aparências, os homens pedem um sacerdote que seja consciente do sentido pleno de seu sacerdócio: o sacerdote que crê profundamente, que manifesta com valentia a sua fé, que reza com fervor, que ensina com íntima convicção, que serve, que põe em prática em sua vida o programa de vida das bem-aventuranças, que sabe amar desinteressadamente, que está perto de todos.

O sacerdote assim, o verdadeiro sacerdote, é testemunho vivo dos valores eternos; sua pessoa representa um mistério indecifrável para muitos, é uma chamada inatacável do divino, testemunho luminoso da da presença e da eficácia de Deus no mundo. Em meio a este mundo contemporâneo no qual tantos homens buscam desesperadamente sua própria segurança existencial no progresso cientifico e técnico, no poder, no dinheiro, na comodidade, o sacerdote testemunha com sua vida que somente Cristo é a solução para todos os enigmas do homem, que somente Cristo é capaz de satisfazer os desejos mais profundos do coração humano, que somente Cristo é digno de fé. Uma identidade e uma missão verdadeiramente sublimes, muito acima do que qualquer homem teria podido imaginar. E, sem dúvida, estamos falando de seres humanos como todos os demais.

PERGUNTAS PARA SEREM REFLETIDAS:

1. Se Cristo é o verdadeiro, único e sumo sacerdote, como entender a missão do sacerdote à luz do que nos diz a carta aos Hebreus? O que significa hoje ser profeta, sacerdote e rei?

2. Pode-se conceber o sacerdócio separado da missão que o envolve?

AUTORIA – Instituto Sacerdos
TRADUÇÃO LIVRE – Ammá Maria Ângela de Melo Nicolleti
FONTE – www.es.catholic.net
Traduzido em 21 de dezembro de 2010